AMOR: ENCONTROS E DESENCONTROS

Ao pisar no palco da coxia de um teatro, Eduardo, com um case de violino na mão, já sabia que uma grande orquestra já estava posicionada no palco, casa cheia. Fraque impecável, necessário concentração, preparação, mas na mente... confusão. Entrar para um grupo seleto como uma Orquestra Sinfônica nunca foi fácil. Desde a tenra idade sua mãe o impulsionava a ter aulas de piano, foram anos intenso, mas ao ouvir o som de violino se apaixonou e passou a se dedicar a esse instrumento. Já adolescente fazia parte da Banda Sinfônica de sua grande cidade. Seu talento virtuoso chamava atenção de todos, mas a sua beleza atraia muitas meninas e mulheres. Sua obsessão em alcançar a perfeição dos acordes, a mais sublime execução, as deixavam sempre como segunda opção. Na fase adulta veio a paixão avassaladora, quando conheceu Suzana, cinco anos mais velha, gerente de marketing, após trombarem-se no metrô. Um pedido de desculpas, um convite para um café, um grande amor brotava forte entre as rochas de muitos impedimentos e incompatibilidades, mas resolveram casar-se com dez meses de namoro. O tempo é mesmo algoz dos amantes. O que antes era visto como algo superável, contornável, o tempo foi transformando em pesar, fardo, dor... raramente os dois dormiam na mesma cama, os horários não incompatíveis. Ele sempre em turnês, poucos dias em casa e pegava na estrada outra vez. Ela sempre trabalhando, chegava tarde da noite, e ele acabava dormindo no sofá de tanto a esperar. Nesses momentos, nenhuma rede social poderia substituir o calor da pele, o sabor doce dos beijos apaixonados, o desejo carnal sempre contido. Ambições diferentes, focos de trabalho a priori, enquanto crescia a ilusão de que tudo passaria e poderia melhorar. Os desencontros eram rotina. Acostumados a vida indigna, afinal, a gente se acostuma com muita facilidade, inclusive ao que é ruim e perverso, entretanto, cada novo desencontro era como levedo em uma massa. Fermentação, amargura, descontentamento, sufocamento, saudades, orgulho. Poucas explicações, insatisfações constantes, o caminho que escolheram trilhar juntos, se bifurcou. E hoje seria o grande dia de sua carreira. O posto de 1º violino era definitivamente seu na Orquestra Filarmônica do Teatro Municipal, fruto dos anos de esforços e que continuava a sugar-lhe muita dedicação e disciplina. Seu coração palpitante, mãos nervosas, que suavam frio por causa do concerto, mas não só por isso... algo lhe havia acontecido. Isso rasgou sua alma, dilacerou o coração. Por isso olhos lacrimejantes e olhar perdido em direção ao palco, que nada encontrava. Ele estava dentro de si, com um filme passando em sua cabeça. O modo como apaixonara-se perdidamente por Suzana, como as pequenas tardes de juntos eram eternizadas na memória. Uma mulher forte e decidida realmente arrebatara seu coração e todo aquele amor era de reciprocidade intensa. Contudo, as brigas, explicações mal dadas, desgaste, esforço, frustração, angústia engolida em seco, motivação podada, conversas não resolvidas. A desconfiança consumia ambos, a reciprocidade se desgastou, oxidou como ferrugem. E justamente naquele dia, crucial e que consagrava sua carreira, uma gota transborda o copo já cheio de desilusões. São assim as relações mal vividas, amor medíocre, mal cultivado, sem a atenção e cuidado necessários para desenvolver sua vivacidade. Parece repentinamente, mas na verdade é cultivado por certo período. É destinado muita energia para sustentar o insustentável e então acontece... não! Não é repentinamente. Dois corpos que não eram mais um. Dois corações despedaçados. Duas vidas orgulhosas e com suas ambições individuais. Quando se casaram, foi um desejo, que não saiu do frio papel. Experiências não divididas, vidas não somadas, mas diminuídas cada vez mais ao longo do tempo. Uma fagulha e a discussão se instaura, ofensas, mágoas guardadas, muitos ressentimentos, nervos, gestos violentos, raiva e decepção. Ambos com seus argumentos, todos errados de certo em suas razões. Relação que antes era um fio tênue, agora se rompe. Ele arruma as malas. Ela entra em devaneios que fogem totalmente a realidade, histérica grita, julga... Cansada chora, soluça até silenciar. Quando ele sai, e a porta bate... Ela desmorona no chão. Numa simetria de pensamentos, infelizmente tarde demais, ambos em choque percebem: o casamento chegou ao fim. “E agora?”, pensamento simultâneo, da semente de um amor forte que um dia cresceu naqueles corações desencontrados da vida. E a medida que os ânimos se acalmam, o furor perde sua força, o entendimento de ambos perderam o que tinham de maior valor em suas vidas: a certeza de ser amado. Os abraços agora serão inexistentes nas madrugadas frias, não haverá mais beijos a serem recebidos com carinho, fervor ou voluptuoso. As lembranças são tão vivazes agora, por que a ira as ofusca tanto? Uma história construída que cairá no mar do esquecimento? Impossível! Restou o perdão não concedido pelo orgulho e altivez, e a saudade excruciante agora dilacera, corta, range, tritura, sangra esses corações... Inertes, ela permanece no apartamento vazio, superlotado de lembranças por todos os lados. Ele, carrega um enorme fardo de culpa e dor, que pesa muito mais que a pequena bagagem e o violino. O tempo sentencia! As horas passam e uma nova certeza é cada vez maior, não há como voltar. Encerrou-se todas as portas, extrapolou-se todas as válvulas de escape, as palavras feriram mais que punhal. Do olhar frio, só se lê desilusão. Chega à noite. A hora do concerto é chegada. Na coxia, pinga no chão não uma lágrima, logo escondida, mas a gota de sangue de um coração despedaçado. Aplausos... Suzana em frente ao Teatro Municipal, pensamentos turvos, perdida, como alguém que perdeu a alma... não é só a noite que está escura do lado de fora. As luzes se acendem, em sua cabeça, Eduardo só vê reflexos e flashs de tudo o que viveu, enquanto o canhão de luz o retira da escuridão da coxia. Alguns atrasados correm pela escada do teatro para não perder o momento tão esperado. Em trajes elegantes, gente estranha passam por Suzana, sem ao menos se aperceberem dela. Lá dentro, o violino chora, em cada nota, arquejos, o som projetado é introjetado numa plateia atônita de um solista que toca sua solidão. Silêncio absoluto, enquanto o 1º violino declara toda sua dor, numa linguagem que a plateia não pode compreender, mas que invade as almas alheias. Chuva fina, até mesmo o Criador não conteve suas lágrimas, que descem do céu cada vez mais forte. Aqui fora, só se ouve os soluços de quem reconhece cada acorde composto para ela. Lá dentro, fim de concerto, e a plateia absorta por um instante, se rompe em êxtase, ignorantes de celebrarem dois corações partidos. Do lado de fora, ouve-se os aplausos e ovações da multidão. 

Kerley Nancy (Fênix) e Murillo Kollek
08/04/2019

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